O economista português Manuel Ennes Ferreira considerou hoje que o processo da Procuradoria-Geral (PGR) de Angola contra a empresária Isabel dos Santos resulta da necessidade de “recuperar o que foi saqueado pela família” do antigo Presidente. Pela família e não só, acrescente-se. Ou seja, também pelos mais altos dirigentes do MPLA, onde pontifica João Lourenço, seja como vice-presidente do partido ou como ministro (da Defesa) de José Eduardo dos Santos.
“O processo contra a empresária Isabel dos Santos vem ao encontro do que são, por um lado, as expectativas das pessoas no país e, por outro, da necessidade que o Governo tem de recuperar aquilo que é devido e que foi, na realidade, saqueado pela família dos Santos, e que coloca questões de carácter ético e de legitimidade que o Governo tem de repor”, disse o economista em declarações à Lusa.
Reagindo ao processo movido pela PGR angolana para arresto dos bens da empresária e filha do antigo Presidente da República, Ennes Ferreira acrescentou que é preciso dar continuidade não só a este caso, mas também a outros que estarão menos visíveis na agenda mediática, sob pena de a tese da perseguição, que não partilha, poder vingar.
“Custa-me usar o termo perseguição porque é um contra-argumento que se utiliza ou que se pode utilizar para tentar diminuir o alcance deste tipo de medidas, e espero bem que vão até ao fim e reponham aquilo a que o Estado tem direito”, disse o professor de Economia.
“Se se ficar apenas por José Filomeno `Zenu` dos Santos ou Isabel dos Santos, a ideia que pode criar é essa [da perseguição política à família do antigo Presidente], e isso seria um erro tremendo; a começar esta acção sobre todos aqueles que saquearam o Estado angolano, que são muitos, há uma que se destaca, e é esta figura da engenheira Isabel dos Santos, obviamente”, vincou o economista luso-angolano.
É interessante ver que Manuel Ennes Ferreira, como muitos outros especialistas, falam “de muitos outros” mas não se atrevem a pôr o nome aos bois. Assim é fácil. É que se o fizessem, se tivessem coragem para o fazer, teriam de falar – por exemplo – de João Lourenço.
“Começar por aí é um sinal muito forte, até porque precisam indirectamente de mostrar que se está a fazer um corte com o antecessor, e nesse sentido não embarco na ideia de ser uma perseguição família, o expoente máximo foi ela e João Lourenço tem de dar sinais de que quer fazer a reforma em questões de carácter politico interno, fazer uma separação da governação anterior e Isabel dos Santos está na primeira linha, ponto final”, acrescentou.
E onde andava João Lourenço quando Isabel dos Santos “saqueou” o dinheiro do Estado? Que posições tomou? O que disse sobre a honorabilidade de José Eduardo dos Santos? O que fez ao dinheiro que a Sonangol deu ao MPLA para que ele vencesse (embora com muita batota) as últimas eleições?
O problema, diz Manuel Ennes Ferreira, “é se isto se arrasta e os outros processos não aparecem, não há notícia, há só umas coisas de vez em quando de um general ou de um antigo ministro, há que avançar e haver coisas muito mais concretas e não ficar unicamente por aqui, porque se ficar por aí, o argumento de que é uma perseguição política e muda apenas os nomes da elite dá azo a esse comentário”.
Além de Isabel do Santos, que foi alvo de um arresto provisório, também José Filomeno `Zenu` dos Santos está a braços com a justiça, respondendo em tribunal por uma alegada transferência irregular de 500 milhões de dólares enquanto era presidente do Fundo Soberano de Angola.
Isabel dos Santos tem-se de queixado nas últimas semanas de estar a ser alvo de perseguição, uma queixa partilhada com outra das filhas do antigo presidente, Tchizé dos Santos, que viu recentemente o MPLA (partido no poder há 44 anos) suspender o seu mandato de deputada, uma decisão que foi entretanto impugnada junto do Tribunal Constitucional.
O que pensa Manuel Ennes Ferreira, Ana Gomes ou Rafael Marques quando a consultora EXX Africa considera que os irmãos José Filomeno e Isabel dos Santos são os “bodes expiatórios” de uma campanha governamental para convencer os investidores internacionais a apostar em Angola, apesar de a corrupção se manter generalizada?
“O julgamento tem todos os contornos de um ‘julgamento de fachada’ que é politicamente motivado para satisfazer as exigências dos investidores relativamente a passos concretos contra a corrupção, e o único objectivo aparente é acusar e prender o filho do antigo Presidente como bode expiatório da corrupção do passado”, escreveu o director da consultora, Robert Besseling, num relatório da consultora enviado aos seus clientes.
O relatório, com o título “Líderes do Estado-sombra de Angola põem em perigo a agenda de privatização”, argumenta que “o Governo está a tentar fazer dos apoiantes do antigo Presidente os bodes expiatórios pelo fraco desempenho da economia, dizendo que há actos de sabotagem económica que estão no centro das frequentes faltas de combustível”.
No documento, o analista escreve que esta tese “está a começar a dividir o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder há 44 anos), que é tradicionalmente unido e que tem garantido a estabilidade política no país desde o final da guerra civil”.
“Há fontes bem informadas que admitem que pode haver uma cisão permanente no partido se não houver melhorias na economia e se os percepcionados ‘julgamentos de fachada’ a membros da família do antigo Presidente não pararem”, acrescenta.
O julgamento, lê-se ainda no relatório, “não deverá inspirar muita confiança na campanha do Presidente João Lourenço contra a corrupção e é mais provável que seja desvalorizada por muitos angolanos como um ‘julgamento de fachada’ com o propósito de atingir e encontrar um bode expiatório do antigo Governo pelos problemas socioeconómicos actuais”.
“Mas talvez mais importante, o julgamento de Zenu [dos Santos] distrai as atenções de um conjunto de escândalos envolvendo o Governo actual e elementos próximos do Presidente Lourenço”, salienta.
Para a EXX Africa, a ordem judicial que arresta os bens de Isabel dos Santos em Angola “é vaga sobre quais os activos que ficam imobilizados e há especulação sobre a data da divulgação, que parece ter sido especificamente escolhida para ter uma atenção maior dos meios de comunicação social”.
Para além disso, aponta o analista, “há fontes locais que dizem que Isabel dos Santos está a ser alvo do Governo para entregar certos activos na banca e nas telecomunicações nas vésperas das privatizações, para agradar aos investidores estrangeiros, mas sem seguir as diligências processuais”.
Para além da questão das acusações judiciais a Isabel dos Santos e a José Filomeno dos Santos, filhos do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, a EXX Africa salienta também o papel do antigo vice-presidente angolano Manuel Vicente, que agora é conselheiro especial de João Lourenço para os assuntos do petróleo e gás.
“O seu papel como conselheiro presidencial dá-lhe uma influência política inigualável sem qualquer responsabilização, enquanto a sua família e os seus associados se preparam para beneficiar com a venda de lucrativos activos angolanos nos próximos anos”, frisa-se no documento.
O relatório da consultora pormenoriza as ligações entre Manuel Vicente e os seus apoiantes, e acusa-o de liderar uma influente rede de tráfico de influências, quer junto do actual Presidente, quer junto do antigo chefe de Estado.
Quando, a 10 de Maio de 2017, João Lourenço, garantiu em Luanda que o MPLA iria lutar contra a corrupção, má gestão do erário público e o tráfico de influências… poucos acreditaram. Hoje há mais gente a acreditar? Já houve mais. As dúvidas continuam a ser mais do que as certezas.
João Lourenço discursava – recorde-se – no acto de apresentação pública do Programa de Governo 2017-2022 do MPLA e do seu Manifesto Eleitoral, mostrando a convicção de que – mais uma vez – os angolanos iriam votar com a barriga (vazia) e que havendo 20 milhões de pobres… a vitória seria certa. E foi.
João Lourenço sublinhou que o programa do MPLA para os próximos cinco anos “é coerente e consistente”, mas para a sua aplicação “de modo efectivo e com sucesso” são precisas instituições fortes e credíveis.
“Para a efectiva implementação deste programa temos de ter os homens certos nos lugares certos”, referiu João Lourenço, então ministro da Defesa, efusivamente aplaudido pelos militantes presentes, na altura (hoje já não é bem assim) formatados e pagos para aplaudir fosse o que fosse que João Lourenço dissesse.
Ainda de acordo com João Lourenço o MPLA iria “promover e estimular a competência, a honestidade e entrega ao trabalho e desencorajar o ‘amiguismo’ e compadrio no trabalho”.
Já antes, no dia 28 de Fevereiro, prometera um “cerco apertado” à corrupção, que está a “corroer a sociedade”, e o fim da “impunidade” no país. Recorde-se que este mesmo MPLA sempre negou, ou minimizou, que a corrupção fosse um “mal que corrói a sociedade”, dizendo que a corrupção é um fenómeno que afecta todos os países. Aliás, João Lourenço advertiu que o problema é a “forma” como Angola encara o problema: “Não podemos é aceitar a impunidade perante a corrupção”.
“O MPLA reafirma neste programa de governação o seu compromisso na luta contra a corrupção, contra a má gestão do erário público e o tráfico de influências”, reitera João Lourenço, acrescentando que o partido conta(va) com “os angolanos empenhados na concretização do sonho da construção de um futuro melhor para todos”.
“Vamos contar com aqueles que estão verdadeiramente dispostos a melhorar o que está bem e a corrigir o que está mal”, disse numa referência ao lema da campanha do MPLA.
João Lourenço admitiu que o “MPLA tem consciência de que muito ainda há a fazer e que nem tudo o que foi projectado foi realizado como previsto”. Por outras palavras, se ao fim de 44 anos de poder, 18 de paz total, o MPLA só conseguiu trabalhar para que os poucos que têm milhões passassem a ter mais milhões, esquecendo os muitos milhões que têm pouco… ou nada, talvez seja preciso manter o regime do MPLA mais 56 anos no poder.
“Contudo, o país tem rumo e estamos no caminho certo, no sentido da satisfação progressiva das aspirações e dos anseios mais profundos do povo angolano”, disse João Lourenço.
Segundo João Lourenço, para que todos os angolanos beneficiem cada vez mais das riquezas do país, o MPLA tem como foco no seu programa de governação para os próximos cinco anos dar continuidade ao seu programa de combate à pobreza e à fome, bem como o aumento da qualidade de vida do povo.
Para a juventude, a franja da sociedade a quem o MPLA atribui “importância fundamental nos processos de transformação política e social de Angola”, João Lourenço disse que vai continuar “a contar cada vez mais com os jovens nas imensas tarefas do progresso e do desenvolvimento”.
Sobre a consolidação da democracia angolana, destacou a realização de eleições autárquicas, a permissão para posicionar o país “num movimento de verdadeira descentralização administrativa”.
“Com a instauração das autarquias, a administração estará mais próxima das populações, o que tornará mais fácil a percepção das suas necessidades e aspirações e também a sua satisfação”, realçou. Terá João Lourenço descoberto a pólvora?
No Lubango disse: “Uma das nossas preocupações, depois de Agosto, será precisamente, não digo criar, mas procurar ampliar ao máximo essa classe média angolana, à custa da redução dos pobres (…) Fazer com que a classe média seja superior à soma dos pobres e dos ricos”.
Se para esses acólitos do MPLA o período de guerra civil (apesar de ter terminado em 2002) justifica tudo, para nós não. Dá jeito ao MPLA estar sempre a falar disso, ir ressuscitando Jonas Savimbi, e, misturando tudo, renovando que heróis só são os do MPLA. Tudo porque… ou o MPLA ganhava ou o fim do mundo chegaria no dia seguinte. Mas não é assim.
Folha 8 com Lusa